Manuel Mendes Silva
Médico urologista (Fevereiro de 2015)
É muito verdadeiro o conhecido aforismo de Abel Salazar quando, no primeiro quartel do século XX dizia que “o Médico que só sabe Medicina, nem Medicina sabe”.
A Medicina sem Cultura, nem é Medicina! O Médico, com M maiúsculo, tem de, necessita de, ser culto! Pois o Médico é muito mais que o técnico da medicina ou o funcionário do centro de saúde ou do hospital. E nessa cultura tem de estar incluída a História Universal, a História da Medicina, a História da Especialidade. Recordar o passado, não (só) para o glorificar, mas para explicar o presente e para conduzir o futuro. Já há 25 anos afirmávamos que “o Médico que não sabe a História da Medicina, e da Especialidade à qual se dedicou, não é um Médico completo. Gostando-se verdadeiramente duma Especialidade Médica ou Cirúrgica, sentimos a premente necessidade de saber das suas origens, da sua evolução e de conhecer os seus protagonistas”.
A Urologia é a Especialidade médico-cirúrgico-técnica que estuda e trata dos problemas e doenças do aparelho urinário e sexual masculino. Etimologicamente significa “ciência”, estudo (logos), da urina, do aparelho urinário (uro). O termo “Urologie” foi criado por Leroy d´Etoilles, em Paris, cerca de 1840. Mas, se a Urologia existe como especialidade médico-cirúrgica independente há menos de século e meio, desde tempos imemoriais que se conhecem vestígios de patologias urinárias e genitais em pedras urinárias, em múmias, em testemunhos em pinturas e, posteriormente, em escritos, descrevendo-as, ou então desenhos de cirurgias urológicas externas simples nos genitais, por motivos religiosos (circuncisão), ou de justiça, ou para “produzir” eunucos para haréns de poderosos (castração), na China, na Índia e em algumas civilizações medio orientais. Também existem representações de actos terapêuticos como sondagem da bexiga – chineses, punção da bexiga com agulhas – hindus, litotomia por talha – assírios e gregos. No antigo Egipto, os papiros de Ebers e de Smith descrevem várias doenças que hoje são do foro urológico.
Mas a História da Urologia confunde-se com a História da Medicina e com a História da Cirurgia, repercutindo-se os grandes passos e avanços da História da Medicina e Cirurgia também na História da Urologia.
É com Hipócrates (séc. V AC) que nasce, na Grécia, a Medicina, que posteriormente Galeno (séc. I DC) confirmará, definindo os preceitos e a prática da Medicina com a descrição de numerosas afecções, algumas “urológicas”, com base em agrupamentos de sintomas e na correcta observação, incluindo a observação da urina, a uroscopia.
Para Hipócrates, a Medicina não incluía a Cirurgia, como era a “talha”. Com a sua teoria dos humores, enfatizava, no seu conhecido juramento, o primado do doente. Galeno estabeleceu a relação entre a lesão e a função alterada e provou a origem renal da urina, sendo a sua observação muito importante no contexto da teoria dos humores.
A uroscopia era um meio semiológico fundamental desde essa época clássica até ao séc. XIX (sendo às vezes até utilizada ainda hoje…), mas também era muito utilizada por charlatães para revelar múltiplas coisas, como gravidez, sexo do feto, e até castidade… Para além da observação visual em ambiente iluminado, em repouso e após agitação, em recipientes apropriados, as “matulas”, de vidro transparente, bojudos e de colo mais estreito embora largo, era também incluído o cheiro, o tacto e o gosto da urina. As várias características dessa observação eram explicadas pela teoria dos humores como consequência de doenças variadas.
No dealbar do séc. I, a Escola de Alexandria, sob controle dos Romanos, praticava a cirurgia, nomeadamente a litotomia com o “pequeno aparelho” (faca e poucas pinças), como descreve Cornelius Celsus. Por essa época Dioscórides escreve uma farmacopeia, com numerosas drogas de origem mineral, vegetal e animal, que marcará mais de um milénio.
A Idade Média na Europa representou muitos séculos de letargia, de feitiçaria, com laivos de astrologia e de alquimia. Os conventos guardaram e copiaram, todavia, informações da antiguidade, algumas delas aproveitadas posteriormente no Renascimento. A Escola de Salerno, seguindo os conceitos de Hipócrates e Galeno, foi contudo um marco nesta época medieval. Praticava a dissecção animal em porcos e, curiosamente, os preceitos desta escola eram redigidos em verso. Para o final da Idade Média começam a surgir as Universidades em cidades que hoje são de Itália, França, Alemanha, Países-Baixos, Inglaterra, Espanha e Portugal, e também os primitivos Hospitais (Hospícios) em que se separavam os Físicos (médicos), os Cirurgiões e os Boticários.
No médio oriente, norte de África e Espanha, a medicina árabe (e também alguma cirurgia) foi bastante desenvolvida e ficaram para a História nomes como Rhazes, Avicena e Averroes. Em Bagdad, Cairo e Córdoba, sedes de califados, a medicina árabe atingiu expoentes de desenvolvimento, e é reconhecida a importância da Escola de Córdoba na Península Ibérica. Avicena, no séc XI, seguia os ensinamentos de Hipócrates e Galeno e a biologia de Aristóteles; em relação à urologia, no seu livro “Canône de Medicina”, descreve com pormenor sondas uretrais.
Na Europa dessa época praticava-se a litotomia, sobretudo em Espanha, França e Alemanha. Era realizada por talha perineal mediana, através do “grande aparelho” (faca e várias pinças de vários feitios). Ficaram, neste campo, nomes como Mariano Santo, e vários membros da família Collot e Tollet (até ao séc. XVII). Havia também litotomistas itinerantes, que iam de terra em terra (de feira em feira) tratando os doentes locais que a isso se dispunham. Devia ser muito grande o sofrimento provocado pela doença, para a tal “cura” se disporem os doentes, pois só de olhar os instrumentos do “grande aparelho” nos arrepiamos como quando vimos instrumentos de tortura…
No Renascimento (séc. XVI) aparece e realça-se a experimentação versus a tradição, a prática versus a teoria. Na Medicina, existem avanços significativos na Anatomia, com Vesálio, na Cirurgia, com Ambroise Paré e na renovação/revolução da Medicina clássica, (de Hipócrates, Galeno e Avicena), com Paracelso. Em relação à Urologia, realçamos uma curiosidade histórica que exemplifica as diferenças entre o séc. XV e o séc. XVI relativamente à próstata: no célebre desenho de Leonardo da Vinci “a cópula”, de 1492, não está referenciada a próstata, apenas a uretra e a bexiga masculina. Só em 1555 André Vesálio a representa e a descreve, como “carnosidades da verga”.
Nos séculos XVII e XVIII existem avanços significativos em relação às ciências da natureza. Aparecem as primeiras Associações Científicas e as Academias. Na Medicina são de realçar nomes como Bacon, Harvey – descobridor da circulação sanguínea, Sydenham, Van Helmont, Sylvius, Bichat, na Fisiologia, e, com a descoberta do microscópio, Malpighi na microcirculação, Leeuwenhoeck na microbiologia e Morgagni na anatomia-histologia patológica.
A Urologia, nos séculos XVI a XVIII, ainda primitiva e não especializada, fazia o reconhecimento, na prática, de poucas afecções, através de complexos de sintomas e da observação e análise da urina – a Uroscopia, e o seu tratamento através de águas e de algumas drogas de origem mineral, vegetal, ou animal, segundo Dioscórides (séc. I) e Garcia de Orta, que no séc. XVI trouxe para a farmacopeia numerosas drogas medicinais do Oriente. Em relação à cirurgia continuava a praticar-se a cirurgia externa dos genitais, dos herniados e potosos, a sondagem da bexiga e a litotomia vesical pelos litotomistas. Com a expansão das doenças venéreas e suas sequelas – os apertos da uretra, desenvolve-se a instilação, exploração e dilatação da uretra, e são de realçar nomes como Amato Lusitano, Filipe Velez, André Laguna, com a técnica das “velinhas” (séc. XVI) e de Francisco Diaz, que publicou em Espanha, no séc. XVI o 1º Tratado de Urologia “Las enfermedades de los riñones, vexiga y carnosidades de la verga”.
As doenças venéreas, nomeadamente a blenorragia (gonorreia) e a sífilis, eram muitas vezes consideradas a mesma doença. Tratavam-se com anti-flogísticos externos, instilações e lavagens da uretra (blenorragia), fumigações com enxofre e mercúrio, injecções com arsénico (“Salvarsan”), este já no início do séc. XX (sífilis). Os tratamentos só mudariam com a antibioterapia.
Em relação à litotomia, ela era praticada, como vimos atrás, por talha perineal mediana, através do “grande aparelho”. Jacques de Beaulieu (Frère Jacques, o da famosa canção de embalar francesa) introduziu, no séc. XVII, a talha perineal lateral. A talha hipogástrica, suprapúbica, foi realizada em Provença no séc. XVI por Pierre Franco. J. Rau e W. Cheselden realizaram-na mas abandonaram-na para a talha lateral de Frère Jacques. Quem a implementou em França, defensora da escola perineal, foi J. Baseilhac, Frère Côme, no séc. XVIII. Outro litotomista famoso do séc. XVIII foi, na Alemanha, V. Von Kern. Uma realidade interessante era a existência de público nas litotomias, para as quais por vezes até se era admitido mediante a compra de bilhete. No séc. XVIII aparece a litotrícia vesical primitiva (esmagamento da pedra vesical através da uretra em vez de a tirar por talha perineal ou hipogástrica). Será todavia no séc. XIX que a litotrícia atingirá o seu maior desenvolvimento, assim como a exploração e dilatação uretral.
Uma curiosidade da época para resolver a incontinência urinária eram os vasos colectores da urina (semelhantes às molheiras actuais) que as mulheres colocavam “entre as pernas” enquanto ouviam as prolongadíssimas pregações e sermões do Padre Bourdaloue (séc. XVII). Alguns destes recipientes, de metal, cerâmica, louça ou porcelana pintada, que se passaram a chamar bourdaloues, eram objectos artísticos, havendo actualmente em Paris um museu destes recipientes, como existe em Salamanca um museu de bacios.
No início a meado do século XIX, a Urologia desenvolveu-se sobretudo na instrumentação da uretra e na litotrícia vesical, datando desta época o início da endoscopia da uretra e da bexiga.
No que respeita à manipulação instrumental da uretra, alguns nomes sobressaem no séc. XIX: Charrière, Beniqué, Dittel, Nelaton, Guyon. A instrumentação da uretra era realizada através de sondas maciças para dilatação (velas, dilatadores) e ocas, evacuadoras, para drenagem (cateteres), quer fossem rígidas, quer flexíveis. As sondas rígidas de drenagem (metálicas ou de outros materiais), sobretudo as de prata, eram no séc. XIX, em França, designadas de algálias. O termo algália ou argália não deriva do árabe como muitos supõem pelo prefixo “al” (esse termo, em árabe, significa perfume), mas sim do grego “erkalion”, cujo significado é utensílio, ferramenta. Charrière e Beniqué, em França, desenvolveram as sondas maciças rígidas, metálicas (dilatadores) e estabeleceram o calibre das sondas (1/3 e 1/6 de milimetro). Dittel na Alemanha desenvolveu também sondas dilatadoras. Nelaton (França) desenvolveu as sondas evacuadoras maleáveis. Felix Guyon, foi quem inventou o mandril duro mas maleável para as sondas ocas maleáveis, tendo também adaptado as sondas olivares de Ducamp e desenvolvido as sondas filiformes. É claro que, para estes desenvolvimentos, foi muito importante a evolução dos materiais e o aparecimento de artesãos, construtores e fabricantes especializados. Os antigos materiais de folhas vegetais, bambu/cana/madeira, corno, marfim, pele de peixe, barba de baleia, pele de animal, couro, tecido, corda, seda, cera, goma, caoutchouc, foram substituídos por borracha, após o grande passo que constituiu a vulcanização e a galvanização. As sondas de metal de cobre, chumbo, ferro, aço, bronze, e até, para os muito ricos, prata, ouro e platina, foram substituídas quase integralmente por estanho. Datam também desta época, embora já anteriormente houvessem aparelhos rudimentares, os primeiros uretrótomos para tratamento dos apertos da uretra, conjuntamente com as dilatações.
No que respeita à litotrícia vesical, iniciada no séc. XVIII, vários nomes no séc XIX ficaram célebres pela sua habilidade e perícia, assim como pela aparelhagem, em França, na Alemanha e Inglaterra. Entre eles contam-se Leroy d´Etoiles, Civiale, d´Amussat, d´Heurteloup, Bigelow, e o próprio Charrière.
É no início do século XIX que a endoscopia da uretra e da bexiga dá os primeiros passos, com Bozini, Lewis, Segalas, Fischer, Desormeaux, Grunfeld. Contudo, antes da electricidade, apenas com material combustível, cera, óleo, azeite ou outro, apesar de mecanismos engenhosos com espelhos e lentes, havia sérios problemas de iluminação nestes primitivos aparelhos que não permitiam uma observação adequada dos órgãos do interior do corpo por estes pioneiros da endoscopia.
É no final do século XIX, em 1877, que se dá o grande passo que iria levar a Urologia a especialidade independente, com a realização da 1ª cistoscopia com aparelho de lâmpada incandescente por electricidade (segundo Edison), por Max Nitze, com o construtor Leiter, na Alemanha. Este primeiro acesso “real” à observação dos órgãos do interior do corpo, permite uma revolucionária abordagem diagnóstica das doenças do aparelho urinário inferior – uretra e bexiga. Alguns anos depois, outro passo fundamental era dado com o acesso ao diagnóstico das doenças do aparelho urinário superior, nomeadamente dos rins, com uma “unha” móvel adaptável ao cistoscópio, em França, por Albarran com o fabricante Collin. Essa unha orientava a introdução ascendente de tubos – cateteres – para os ureteres e rins, permitindo a análise separada da urina de cada um dos rins, com diagnósticos de lateralidade. Já anteriormente tinha havido tentativas engenhosas de separação da urina de cada um dos rins, através dum cistoscópio com um septo com colheita separada das urinas, por Luys, pois era uma época de patologias predominantes muito diferentes das actuais, com prevalência da tuberculose, em que a lateralidade da patologia era fundamental para a terapêutica, mas foi com Albarran que essa lateralização se instituiu, levando à formulação do “dogma de Albarran” no tratamento da tuberculose renal. Contudo, na realidade, quem inventou a “unha de Albarrán” foi um dos seus alunos, Imbert, mas foi Albarran quem apresentou a invenção e quem desenvolveu os cistoscópios, com o construtor Collin, até terem o aspecto actual, com peça para cateterismo ureteral, diagnóstico ou terapêutico.
O desenvolvimento da endoscopia urológica, para além da observação e diagnóstico, iria fazer desenvolver, no final do séc. XIX, início do séc. XX, uma série de aparelhagem terapêutica “operadora” que iria permitir a futura cirurgia endoscópica ainda antes da electrocirurgia. Entre eles estão os cistoscópios binoculares, permitindo um mais fácil cateterismo ureteral terapêutico para drenagem, os cistoscópios operadores, com pinças e “laços” que permitiam o arrancamento de pólipos, os litotritores ópticos, os uretrótomos ópticos e os “punch” para esmagamento.
Entretanto continua o desenvolvimento do fabrico e acabamento das sondas, quer dilatadoras quer evacuadoras. Assim, fabricam-se sondas de diferentes materiais e formas, rígidas de estanho e prata, flexíveis de borracha, latex, polivinil PVC e posteriormente silicone, de diferentes calibres (segundo Charriere e Beniqué), com diversas terminações (boleada – Nelaton, Tiemann; cortada – Couvelaire; direita – Doufour; curvada – Bequille), com diferentes tipos de orifícios para drenagem (em número e localização, terminais e laterais, mutiperfuradas – Gouverneur), com diversos modos de fixação (aneis laterais para fixação ao pénis – Amussat; terminação em cogumelo – Pezzer, Malecot; balão insuflável – Foley, EUA, 1935), ou com outras caracteristicas (balão para loca prostática – Delinotte; uma, duas, três vias; aramadas). Fabricam-se também diversos tipos de sondas ureterais (rectas, boleadas – Chevassu, etc).
Por outro lado, é neste final do séc. XIX que, na fisiologia, se estabelece, por Claude Bernard, o conceito de “meio interno” e homeostasia, enfatizando a importância da função renal, e que, por outro lado, na anatomia patológica, R. Virchow dava passos fundamentais na compreensão e na definição celular e anatomo-clínica das doenças.
No fim do século XIX, início do século XX, outro enorme passo se dá no diagnóstico médico que irá revolucionar também o diagnóstico urológico: a descoberta dos RX por Roengten, em 1895, o início da Radiologia.
Com o RX é possível a visualização do aparelho urinário com produtos opacos aos RX introduzidos através de sondas e cateteres, uretrocistografia, pielografia ascendente, (Chevassu, início do século XX). É também possível a contrastação das artérias renais através de injecção na aorta, aortografia (Reynaldo dos Santos, 1929), assim como a visualização da árvore excretora urinária com produtos injectados por via intravenosa, com valor também funcional, urografia ou pielografia intravenosa (Rowntree, 1923, Von Litchenberg, 1929). Estes são marcos fundamentais para o esclarecimento da anatomia e funcionamento patológicos e para o diagnóstico das doenças do aparelho urinário.
Datam também desta época os primitivos aparelhos de urodinâmica, nomeadamente o contractómetro vesical de Trouvé, o “cistómetro registador” de Mosso e Pellacani, o cistómetro “registador mecânico” de Lewis e a fluxometria observacional.
Igualmente no século XIX e no início do século XX existiram significativos progressos na terapêutica acompanhando os avanços no diagnóstico.
Assim, na cirurgia, a introdução da microbiologia, da antissepsia e assepsia (Lister, 1869; Pasteur, 1864, Koch, 1882) e os progressos na anestesia (Morton, 1846, com o éter; Simpson, 1848, com o clorofórmio; Riggs, com o protóxido de azoto) permitiram a realização da primeira nefrectomia (Simon, 1869), da primeira prostatectomia (Freyer, 1900), entre outras cirurgias pioneiras. A partir do 2º quarto do século XX, a quimioterapia, nomeadamente os antibióticos, (penicilina: Flemming, 1929), e também os corticóides, as hormonas, os enzimas, as vitaminas, assim como a hemoterapia e medicina transfusional, trouxeram a possibilidade de novas técnicas de cirurgia reparadora, por oposição à cirurgia tradicional de exérese ou de drenagem (deve-se a H. Morris, em Inglaterra, a primeira nefrolitotomia, em 1880, em vez de nefrectomia).
No final do século XIX, início do século XX, a Urologia foi das primeiras disciplinas a individualizar-se da Cirurgia Geral,devido à especificidade das suas técnicas de diagnóstico e terapêutica, nomeadamente a endoscopia e a radiologia, e também às particularidades de alguma da sua cirurgia, nomeadamente da próstata e das vias urinárias.
A cirurgia prostática, com as suas especificidades, contribuiu para a especialização da Urologia. Entre alguns dos seus pioneiros do final do séc XIX, início do séc. XX, contam-se G. Goodfellow, E. Fuller, I. Von Dittel, P. Freyer, H. Harris, T. Millin.
O aperfeiçoamento das correntes diatérmicas, dos solutos assépticos não condutores de electricidade, e o progresso na aparelhagem óptica sofisticada, permitiram o desenvolvimento da cirurgia endoscópica da próstata e da bexiga, um apanágio da Urologia. Para além da ressecção endoscópica da próstata e da bexiga (Stern-MacCarthy, séc. XX), praticava-se o esmagamento de tecidos com “Punch” (Young, séc. XX), a litotrícia óptica (Young, séc. XX) e a posteriormente a uretrotomia óptica (Saxe, séc. XX).
Max Nitze (Alemanha) e Felix Guyon (França) são considerados os “Pais” da Urologia, no final do séc. XIX. Max Nitze realizou a 1ª cistoscopia com iluminação elétrica. Felix Guyon foi o 1º Professor de uma Cátedra de Urologia, no final do séc. XIX e foi o 1º Presidente dum Congresso internacional de Urologia. (Association Internacional d´Urologie), Paris, 1908.
Os tempos actuais trouxeram, na Medicina e particularmente na Urologia, significativos progressos na terapêutica acompanhando os avanços no diagnóstico, com o desenvolvimento das tecnologias e das ciências básicas. Assim, são de referir as técnicas computadorizadas de imagem (ultrasonografia, tomografia axial computadorizada-TAC, ressonância nuclear magnética-RNM, angiografia digital e doppler, isótopos radioactivos, tomografia de emissão de positrões -PET), os métodos imunológicos, genéticos e patológicos de diagnóstico, entre os quais o “histórico” PSA (Prostate Specific Antigen) e a imunohistoquímica, os meios instrumentais sofisticados de urodinâmica e video-urodinâmica, com a melhor definição das disfunções miccionais, desenvolvendo também a uroginecologia. A endourologia (ureterorenoscopia, cirurgia percutânea), alitotrícia externa por ondas de choque (LEOC) e interna com vários tipos de energia, o laser, a laparoscopia e a cirurgia laparoscópica, a cirurgia robotizada e a telecirurgia, trouxeram grandes avanços, sendo os tratamentos actuais da grande maioria das patologias urológicas totalmente diferentes dos do passado recente, sejam eles medicamentosos, cirúrgicos ou tecnológicos. Muitos destes avanços terapêuticos são baseados também no melhor controle da infecção, com vacinas e antibióticos de novas gerações, em novas técnicas de reanimação em cirurgia, que levaram a progressos na cirurgia reparadora,ao desenvolvimento da microcirurgia e à implantação de próteses (de que são exemplos as modernas próteses penianas e para a incontinência urinária). O desenvolvimento da diálise, do rim artificial e da transplantação de órgãos, com imunocontrole, foi revolucionário no tratamento da insuficiência renal. Na história da transplantação renal não podemos deixar de referir os nomes de Alexis Carrel, de David Hume nos EUA, de René Kuss na Europa, e de Linhares Furtado em Portugal. Também o desenvolvimento daterapia do cancro contou, para além da cirurgia, com novas armas, como a radioterapia, com toda a sua enorme evolução tecnológica, as novas aplicações de meios físicos, a hormonoterapia, a quimioterapia, a imunoterapia, a terapia genética, as terapias-alvo, com novas drogas e novas abordagens terapêuticas adjuvantes e neo-adjuvantes. Será bom lembrar que a primeira forma de hormonoterapia foi urológica (supressão androgénica no tratamento do carcinoma da próstata, Huggins, prémio Nobel, anos 30 do séc. XX); em relação à quimioterapia, dois dos seus avanços significativos foram urológicos, no tumor do testículo e no tumor renal de Wilms. No que respeita à Andrologia, nas suas vertentes das disfunções sexuais e da infertilidade, para além de grandes avanços nas disfunções sexuais (sobretudo na disfunção eréctil, com a revolução “Viagra” e as modernas próteses penianas, e recentemente também novas abordagens na disfunção ejaculatória), há também grandes avanços no tratamento da infertilidade, com a urologia em colaboração com a ginecologia e com o laboratório. Existe pois uma enorme distância por um lado entre o “ginseng” e outras drogas afrodisíacas, as próteses penianas aramadas externas ou implantando fragmento de costela, as mezinhas para ajudar a fertilidade, e, por outro lado, as recentes drogas vasoactivas, as próteses insufláveis, a colheita de gâmetas com fertilização “in vitro” (FIV). Longe vão os tempos, também, dos cintos de castidade femininos e masculinos, evitando a masturbação, e os engenhosos dispositivos para evitar as erecções e poluções nocturnas.
Nos tempos actuais, a Urologia, de especialidade eminentemente cirúrgica passou para uma tendência cada vez menos cirúrgica e menos invasiva, com um diagnóstico cada vez mais preciso e menos invasivo, baseado em tecnologias, e um tratamento tanto quanto possível conservador, com meios técnicos cada vez mais aperfeiçoados – fármacos ou técnicas mini-invasivas, utilizando a evidência científica, os RCT (Randomized Control Trials) e os RLP (Real Life Practice), que permitem a elaboração de “Guide-Lines”, recomendações de prática clínica. Uma curiosidade neste campo refere-se às recomendações na Hiperplasia Benigna da Próstata (HBP), em que as primeiras a nível mundial foram originadas em Portugal (Associação Portuguesa de Urologia). Por outro lado evidenciam-se hoje a prevenção e a reabilitação e a paleação possíveis, tendo em foco a qualidade de vida. A prática da Medicina, e também da Urologia, tem hoje novas visões humanísticas e éticas, contrapondo o clássico acto médico individual e a Medicina personalizada a uma Medicina praticada em equipa.
A investigação científica e técnica tem hoje um papel fundamental nos avanços da Medicina e da Urologia. Muitos destes avanços devem-se às tecnologias, quer de imunologia, genética, bioquímica, biofísica, biologia molecular e outras ciências básicas, quer de óptica, meios físicos e químicos, quer de informática, informação e comunicação, tendo hoje a informática, a internet e a telemedicina um papel fundamental na nossa vida moderna e na prática e no ensino da Medicina.
A educação para a saúde, dos profissionais e do público, através de novos meios de comunicação, com prevenção da doença e diagnóstico precoce para tratamento adequado, estão hoje na ordem do dia. E, no que respeita particularmente ao ensino e treino na Urologia, estes sofreram significativa melhoria com as novas tecnologias, as novas perspectivas educacionais médicas, e os laboratórios de ensino e prática tecnológica e cirúrgica. É também interessante verificar-se hoje uma “feminização da Urologia”, que como outras áreas, perdeu o seu carácter exclusivo masculino de outros tempos, até relativamente recentes.
Nos tempos de hoje, e cada vez mais no futuro, a Urologia comporta subespecialidades que a numerosa e sofisticada tecnologia impõe (urologia ambulatória, litíase urinária, urologia oncológica, andrologia e medicina sexual, neurourologia e disfunção miccional, urologia ginecológica, urologia pediátrica, urologia reconstrutiva, transplantação renal, endourologia, cirurgia laparoscópica e robótica, etc.), subespecialidades essas com relações com a especialidade mãe, mas também com ligações muito fortes a outras especialidades, o que esbate fronteiras, e impõe uma nova maneira de encarar a actividade médica, permitindo a constituição de equipas monoespecializadas mas pluridisciplinares, dotadas de meios e com experiência para encarar e responder da melhor forma aos desafios da adversidade que correspondem à falta de saúde e de qualidade de vida a qualquer nível. Todavia, apesar de toda a inovação, há que ter em conta que, se a relação médico/doente se transformou, nunca nos podemos esquecer dos princípios hipocráticos e éticos da prática da Medicina – o humanismo e a compaixão, além da eficiência, são fundamentais para uma verdadeira prática médica de qualidade. Para além de eventuais considerações financeiras, as novas tecnologias não nos podem fazer afastar dos valores básicos da Medicina. Esta é cada vez mais baseada na ciência, mas não há doenças, há doentes… A Medicina, e obviamente a Urologia, engloba e implica a arte de saber lidar com os doentes.
No que respeita à Urologia portuguesa, nesta breve síntese, são de referir alguns vultos que tipificam avanços. Apenas são referidos, todavia, nomes até 1950.
João Genovez – 14?? – 15??
1º Cirurgiâo litotomista legalizado em Portugal, em Lisboa.
Feliciano de Almeida – 16?? – 1726
Escreveu “Chirurgia Reformada”, em que descreveu o “Cisório”, pequena faca para uretrotomia.
Artur Furtado Pereira – 1863 – 1934
Realizou a 1ª Litotrícia em Portugal na Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa, 1897. Foi Presidente da Mesa de Urologia no XV Congresso Internacional Medicina, Lisboa, 1906. Foi o 3º Presidente da Associação Portuguesa de Urologia. Publicou uma “Semiologia Urinária”.
Óscar Moreno – 1878 – 1971
Foi um polo na Urologia do norte do país, no Porto. Dedicou-se à exploração funcional renal (constante de Ambard-Moreno).
A Associação Portuguesa de Urologia foi fundada em Lisboa em 15 de Novembro de 1923 por 25 sócios fundadores, personalidades marcantes na Medicina e na Cirurgia portuguesas na época, que se interessavam ou dedicavam à Urologia, com o objectivo de promover o seu desenvolvimento científico a sua prática. Os Colégios da Ordem dos Médicos foram fundados em 1980 como órgãos técnicos consultivos nas várias especialidades, tendo importante papel na definição e avaliação dos Internatos. De nomeação até aos anos 90 do séc. XX, a partir daí as suas Direcções foram eleitas pelos pares em cada especialidade. AAssociação Lusófona de Urologia foi fundada em Goiânia (Brasil) em 2009, integrando os urologistas de todos os países lusófonos ou de outros países mas falando português. O Grupo Português Génito-Urinário (de Oncologia Urológica) da European Organization for Research and Treatment of Cancer e do South European Uro-oncological Group (GPGU-EORTC/SEUG), foi fundado em Lisboa em 1984 como grupo multidisciplinar dedicado à oncologia urológica.
Presidentes da Associação Portuguesa de Urologia, 1923 – 2015, Artur Ravara, 1923-1930, Ângelo da Fonseca, 1930-1932, Artur Furtado, 1932-1934, Henrique Bastos, 1934-1937, Reynaldo dos Santos, 1937-1950, Morais Zamith, 1950-1961, Pinto Monteiro, 1961-1963, Raúl Matos Ferreira, 1963-1967, António Carneiro de Moura, 1967-1969, João Costa, 1969-1971, Henrique Costa Alemão, 1971-1977, Arménio Pinto de Carvalho, 1977-1980, Alexandre Linhares Furtado, 1980-1984, Alberto Matos Ferreira, 1984-1988, José Campos Pinheiro, 1988-1992, Joshua Ruah, 1992-1996, Adriano Pimenta, 1996-2000, Manuel Mendes Silva, 2001-2005, Francisco Rolo, 2005-2009, Tomé Lopes, 2009-2013, Arnaldo Figueiredo, 2013-2015.
Presidentes do Colégio de Urologia da Ordem dos Médicos, 1980 – 2015, Alexandre Linhares Furtado, 1980,-1983, Alberto Matos Ferreira, 1984-1995, Adriano Pimenta, 1995-1996, António Requixa, 1996-1997, Manuel Mendes Silva, 1997-2000, Mário Reis, 2000-2006, João Real Dias, 2006-2012, José Palma Reis, 2012-2015.
Presidentes da Associação Lusófona de Urologia, 2009-15, Manuel Mendes Silva (Portugal), 2009-2013, Paulo Palma (Brasil), 2013-2015.
Coordenador do Grupo Português Génito-Urinário (de Oncologia Urológica) da European Organization for Research and Treatment of Cancer e do South European Uro-oncological Group (GPGU-EORTC/SEUG), 1984-2015, Fernando Calais da Silva (1984-2015)
(1) Texto baseado nas apresentações realizadas na Secção de História da Medicina da Sociedade de Geografia de Lisboa em 26 de Junho de 2014 e no Núcleo da História da Medicina da Ordem dos Médicos em 14 de Janeiro de 2015. Os diapositivos dessas conferências encontram-se no sitio da Ordem dos Médicos, na página do Núcleo da História da Medicina.